domingo, 19 de junho de 2011

O fim de um mundo (Conto)

Em um dia onde tudo parecia ir bem, o sol estava brilhante o céu limpo e o clima agradável.  Cerca de vinte o três graus, as pessoas andavam normalmente nas ruas, os exploradores: exploravam, os explorados: lamentavam-se, os ladrões: roubavam e os pobres choravam. Tudo como manda o figurino, eis que abre uma luz no céu e uma voz imponente que se pronunciava como o criador disse:

- Seres Humanos, vós desde a criação, vem fazendo o mal, começou com Adão e Eva, depois Caim, mandei o dilúvio para que tudo fosse criado novamente e o bem prosperasse, mas para quê? Fizeram tudo de novo, não adiantou nada a minha seleção, os descendentes de meu melhor homem, tudo de novo, mandei meu filho, vejam até onde me fizeram ir, mas nada, usaram teus ensinamentos para cometer o mal, mataram em teu nome, fizeram guerras, oh! Como podem matar em meu nome!

Multidões paravam para ver e escutar a voz, as fábricas pararam, as pessoas saíam do carro para escutar a voz, os transeuntes arregalavam os olhos, alguns ligavam para os familiares, outros passavam a mão pelo rosto e perguntaram para si mesmo se aquilo realmente estava acontecendo. Mas estava. Era tudo muito real. O Criador desceu à terra como estava escrito em algumas escrituras. Bem a descida não foi bem como os crentes esperavam, menos audaciosa, parecia que o Criador não se preocupava muito com ritos, como a maiorias pensava.

O que acontecia ali era algo que todos esperavam, todavia, pensavam que só iria acontecer em suas gerações futuras. Comoção geral. A voz era ouvida em todos em lugares mas não se via imagem alguma, como se fosse uma alucinação coletiva. Onipresente. A voz então continuou:

- Serei breve e claro. Amanhã à meia noite, a cerca de dezesseis horas para ser mais exato vós tereis o que vêm procurando. Mataram em meu nome, distorceram minha palavra, roubaram uns aos outros, feriram, estupraram, traiu seus companheiros, não respeitaram meus mandamentos, falaria mais, mas as suas consciências falarão por si mesmos.

Ao som daquela voz imponente e retumbante, ao final daquele pronunciamento e o desaparecer daquele clarão, o medo absoluto tomou o coração da multidão e, ao perceberem que estavam todos condenados, que a vida já não iria mais ser continuada, o desejo, o pecado original, aflorou como uma explosão de dentro de seus peitos, o caos, que antes ao menos antes era reprimido pela crença da salvação ou por qualquer outro subterfúgio confortador surgiu de forma dominadora.

Palavras não podem descrever o que se sucedeu; uma carnificina sem igual. A raiva que antes era guardada bem debaixo da consciência surgiu como uma besta, uns culpavam aos outros por aquela situação, por terem sido condenados ao inferno por Ele. Ninguém assumia responsabilidade alguma, a culpa era sempre de outro alguém, e esse alguém deveria sofrer.

Desde o crente mais fervoroso até o mais ignominioso pecador mergulhavam num mar de sangue e de desejos extremos, sim, perante a morte, alguns queriam viver por aquelas últimas horas o que não tinham vivido por toda a vida. A busca de prazer imediato resultou em estupros humilhantes e todo tipo de perversão inimaginável por parte de muitos. Outros só queriam vingança, vingança por terem sidos capachos por toda a existência, vingança daqueles que tinham tirado suas liberdades, que os tinham feito viver na mediocridade, que tinham cortado pela raiz todo o potencial de ser humano que lhes sobrava.

A terra foi empapada de sangue, urubus infestavam as ruas se banqueteando com a carne dos mortos. Essa guerra contra si mesmo, que, deve ser observado, durou por poucas horas, teve como resultado a redução drástica de habitantes da terra, poucos sobravam, o último ato estava por vir.

A noite havia chegado, ao perceberem o fim próximo a maioria dos sobreviventes parou com a carnificina sem sentido. Um outro tipo de medo surgiu, o medo da morte, o medo do esquecimento. Todos olharam para o céu e esperaram o Deus misericordioso, por essa atitude, dava para perceber que iriam tentar, pela última vez, comovê-lo, iriam tentar, entre lágrimas abundantes, pedir uma última chance para a humanidade, alguns ,até mesmo, estavam de prontidão a cometerem sacrifícios em seu nome novamente junto com seus potenciais mártires, dispostos à crucificação mais rígida possível.

A luz divina apareceu novamente no horizonte, um grito uníssono surgiu, “Senhor, poupai-nos, não temos culpa!”, eram eles, os sobreviventes do apocalipse, ajoelhados, pedindo por uma última chance na terra.
A voz simplesmente respondeu:

- Levantem-se, crianças estúpidas, vocês me decepcionam.

Surpresa geral, todos se levantam receosamente, o que seria isso?

- Não é preciso que eu dê um fim a este mundo, vocês mesmos já cumpriram muito bem com esse propósito, ao invés de se arrependerem, ao invés de transcenderem a si próprios nestes últimos momentos, vocês só souberam atender ao capricho de suas mentes corrompidas, seja por sangue ou sexo, isso me deprime, isso me mostra que Ele mais uma vez falhou e que tudo terá que ser começado novamente.

A curiosidade redobra, quem é “Ele”?!

- Tenho algo a lhes dizer, e quero que prestem atenção, eu não sou Deus, sou no máximo um enviado D’Ele. O grande Senhor tem vergonha de se apresentar à sua criação, pois todos vocês, crianças, são um reflexo do grande erro, a impossibilidade de se alcançar a pureza, a perfeição definitiva. Quantas vezes eu já estive dando este comunicado a milhares de povos, a milhares de mundos? E o resultado final é sempre o mesmo, a destruição, esse fator caótico maldito.

A confusão no rosto de todos é evidente, as perguntas são infinitas. O que raios estava acontecendo, não era aquele para ser o fim?

- O homem foi feito à semelhança de Deus, essa é uma das maiores verdades escritas naquele livro. Porém, Ele passou não só as qualidades para a sua cria, como também um dos seus maiores defeitos, o caos autodestrutivo, a selvageria irracional, assim como um pai passa uma doença congênita ao filho.  Acreditem ou não, O Senhor tem esse defeito, sua constituição é de puro caos, a sua deficiência é essa, apesar de todo o poder. Ele nunca entendeu isso, até mesmo procurou no infinito pelo seu Criador, para lhe perguntar o motivo desta maldição. Nunca obteve sucesso, nunca achou uma resposta, e por causa dessa sua falha intrínseca, vem tentado se redimir através de sua criação, mas, não importando o esmero com que a cria, o erro sempre aparece, como uma praga. Já disse que houve milhares de mundos como este, e, infelizmente, todos chegaram a esse ponto, a esse apocalipse, a este ‘final do mundo’, que nada mais era do que um teste, uma vã esperança, de que todos vocês iriam chegar à perfeição , a redenção, no último momento, apesar de toda a destruição anterior. Mas ,assim como nas outras ocasiões, assim como nos outros testes, falhamos, pois vocês não fizeram nada além de se embebedarem no sangue de seus próprios irmãos!

A voz fica em silêncio por um momento, parece que observa a multidão, esperando alguma reação dela, como se a desafiasse.

- Tudo irá começar novamente – disse de repente, com uma voz mais lamuriosa do que antes-, as guerras, a fome, o desespero. Não iremos suceder na busca da perfeição, sei disso, mas sou só um servo, e, portanto, devo acompanhar o meu Senhor nessa loucura.  Antes de ir, quero que saibam que vocês, humanos, nunca foram expulsos do paraíso, ao contrário, o paraíso poderia ser retomado a qualquer momento. Foram vocês que não o quiseram, que o rejeitarão, foram vocês, só vocês.  Agora eu me vou embora, podem se afogar na própria miséria se quiserem, ninguém se importa. Deus irá depositar suas esperanças em uma nova cria, tentara se aperfeiçoar inutilmente, e eu... eu só posso lamentar.

O clarão desapareceu, a consciência pareceu agarrar a cada um dos sobreviventes pelas pernas. Uma culpa dolorosa de existir, de estar vivo, surgiu. Perceberam finalmente que tinham sido abandonados por Deus e que cada um tinha de encarar, se é que era possível, o que haviam feito por àquelas horas, o que haviam feito naquele teste extremo.

Desolações por toda a parte, o fim não havia chegado, mas haveriam de viver como renegados por Deus. Assim como Caim, estavam marcados pela corrupção, o pecado original já nascera junto com eles, a salvação era cara demais, exigia demais, aquele povo era incompleto, trazia a maldição do Pai.

A única coisa que poderiam fazer é viver com essa culpa, assim como seus filhos e os filhos dos seus filhos, assim como qualquer um que fosse de haver a pisar naquela terra maldita e esquecida.  

(Adriano Andrade, Arthur Bernardes)

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