Chegara finalmente o momento esperado, a prometida, a nova salvadora daquele lugar iria sacrificar-se, oferecer sua vida a um bem maior.
Prepara-se para isso por toda a sua existência, fazia parte de uma tradição macabra daquela vila, ela não era, nem deveria ser, a última a livrar aquele povo do mal absoluto, da terrível criatura que assolava aquelas terras desde o início dos tempos.
O dragão, o demônio de asas como chamavam alguns, poupava a vila mediante a um trato: de tempos em tempos, uma moça, escolhida quando criança pela própria besta, quando atingisse a idade, deveria oferecer sua vida de livre e espontânea vontade a ele.
Um capricho digno de tal criatura vil, a donzela escolhida deveria caminhar sem pestanejar a morte, não havia nenhum cavaleiro branco para salva-la desse destino, embora em tempos imemoráveis alguns tolos tivessem tentado inutilmente derrotar a criatura.
O povo daquela vila já não mais resistia, fugir não era uma opção, haviam se acostumado com a idéia de oferecer numa bandeja de prata um dos seus ao demônio.
Desde criança a escolhida era instruída sobre o seu destino, sobre como era heróico sacrificar-se para aquele povoado e de como seria lembrada após a morte, como uma mártir, uma santa, a glória de nunca ser esquecida por aquelas pessoas.
Porém, desta vez, a donzela escolhida, no momento final já não tinha tantas certezas sobre seu suposto destino.
Fora instruída para isto, sabia que tinha um dever moral para com os seus, no qual ela deveria caminhar sorrindo para o abismo. Todos contavam com ela, havia a certeza absoluta de seu sacrifício entre aquela gente, mesmo assim, no fundo, a garota não queria morrer por motivo algum.
Quem pode explicar o que diferiu ela das outras escolhidas? Não há como dizer, cada pessoa é um universo diferente, e em seu universo a idéia de não viver mais não lhe agradava.
Do que adiantaria a glória? Do que adiantaria ser canonizada como santa? Estaria morta sem nunca mais poder desfrutar dos prazeres da vida, condenada a escuridão sem fim.
E, mesmo se consumasse o ato, anos mais tarde outra garota iria ser escolhida e consequentemente teria de oferecer-se a besta, não podia deixar continuar esse ciclo interminável de mortes de inocentes, decidira não seguir adiante.
Egoísmo? Talvez, mas não quanto o povoado daquela vila, que impunha e encorajava que um dos seus fosse de encontro a criatura demoníaca. Oras, entre o egoísmo individual e o coletivo não existem diferenças, ainda é egoísmo de qualquer forma.
Ao contar a sua decisão ao povoado a donzela surpreendeu-se, talvez por sua ingenuidade, a bajulação e a misericórdia de antes se transformaram numa agressividade sem limites, muitos dos que rezavam por seu nome agora o amaldiçoavam, certas pessoas ficaram tentadas a simplesmente amarrá-la e a levarem ao demônio alado.
Obrigá-la não daria certo, o dragão queria a moça disposta a morrer, queria que a escolha fosse dela, não seria enganado, não era possível ir contra o seu capricho.
O amor do povo era agora um ódio ardente, alguns suplicaram aos prantos para que a donzela os salvasse, não houve nenhum resultado, a decisão dela prevalecia acima de tudo.
Desistiram de tentar convencê-la, a multidão exigia que ela fosse embora, caso o contrário eles próprios dariam um jeito de cessar com a vida da moça, sua condenação seria a expurgação completa, a solidão torturante de um mundo vasto e cheio de incertezas.
Aceitou sair. Enquanto percorria os portões, pensava no que havia rejeitado, o egoísmo dos mártires, sua pessoa sendo lembrada com louvor e carinho por muitas gerações, uma grande tentação, e mesmo assim só um capricho, como o do dragão maldito.
Longe do lugar onde nasceu, viu aos céus grandes asas vermelhas, que tampavam o sol, indo em direção a vila, resolveu não mais olhar para trás, o caminho a sua frente era desértico, não sabia o que iria fazer, talvez não sobrevivesse muito, mas não havia rancor em seu coração, tinha feito a sua escolha apesar de tudo, as vezes esse é o maior sacrifício que se pode cometer.
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