quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Ascensão

A bebida já não tinha aquele efeito inebriante de outrora, pelo contrário, parecia que quando bêbedo ficava a par da verdadeira situação de sua vida. Era como se toda a podridão interior de sua alma fosse revelada sem nenhuma misericórdia, o medo e desespero em sua forma mais pura.
Doravante, continuava a beber com avidez, e de quando em quando parava e , pensativamente, ficava a olhar o copo à sua frente. Sua face ficava tão séria nesses momentos que quem o olhasse de longe diria que estava a ruminar algum tipo de conspiração, algum tipo de ato imediato e feroz.
Bebeu num só gole o conteúdo do copo, o líquido desceu quente, sentiu um gosto metálico e amargo. Arrependeu-se de ter tomado tão depressa, logo seu estômago exibia uma reação lenta e fatal, suas tripas começavam a dar nós, já podia sentir o vômito no extremo da garganta.
Correu para o banheiro, não podia mais segurar o que dele tentava sair. A fétida podridão do cubículo em que entrara só piorava a situação. Finalmente agachou-se na privada malcheirosa e cuspiu o que nunca pôde confrontar.
Quando acabou de expelir aquela essência estava exausto, como se aquele processo tivesse drenado as últimas forças de que dispunha. Encarou a gosma nojenta no fundo do vaso, uma gosma amarelo-verde viscosa que parecia conter em si toda a perversidade do mundo.
Ficou ali por alguns minutos a encarando, chegara há muito tempo ao fundo de um poço sem fundo e simplesmente não tinha o que fazer. Conforme o tempo foi passando algo engraçado começou a acontecer, seja pela bebida ou talvez pela pretensa loucura chegando ao coração deste homem, aquele vômito nojento e fétido tomou uma forma.
O homem esfregou os olhos, não era possível, não podia ser possível, aquela poça nojenta estava com um formato de rosto humano, e tinha até mesmo um sorriso, um sorriso sarcástico e medonho, e os seus olhinhos miravam fixamente o homem.
            Não vai dar descarga?
Ele olha para os lados, havia alguém o observando? Não, ninguém naquele lugar, só ele... E o vômito.
            Presumo que não tenha me escutado, então irei perguntar de novo, não vai dar descarga?
            Quem é você? Como pode estar a falar? Por Deus, estou ficando louco? Além de tudo, estou ficando louco?
            Sempre se vitimando –disse a mesma voz irritadiça- sempre achando que o mundo está a conspirar às suas costas, não o culpo, é a sua natureza, e não se pode pedir a um homem que mude a sua natureza.
            O que quer dizer com isso? Aliás, como pode estar a dizer qualquer coisa? Gritou o homem, desesperadamente.
            Sabe muito bem o que quero dizer, você sabe o porquê pelo qual estou a dizer tudo isso. É um impasse que vem adiando por toda a sua vida miserável, e não se engane, todas as suas péssimas escolhas o levaram até aqui, até este banheiro pútrido deste boteco de merda.
Não pôde responder, estava em estado de choque, a loucura parecia o ter enjaulado, mas no fundo de sua alma algo o inquietava.
            Não precisa responder no momento. Aliás, palavras não irão adiantar neste momento, só ações serão úteis, não há mais espaço para palavras, não há mais espaço para erros. Está na hora de admitir o que o vem assombrando, o que vem negando por toda uma vida, eu, isso mesmo, você recusou a compactuar comigo, mas traiu-se no processo.  
            A verdade é que sou seu único amigo, a verdade é que você é um hipócrita que nunca me aceitou, mas mesmo assim sabe, no fundo do coração sabe, que você sou eu, nós, meu camarada, somos vômito-A voz fez uma pausa, como que para contemplar o silêncio, e depois, numa voz mais grave, continuou - Você me rejeitou e por isso foi rejeitado por um tipo diferente de sistema e agora vive como uma sombra, sem esperar muito pelo dia seguinte. Mas ainda existe a opção de me aceitar, aceitar que você é da mesma constituição que eu, da mesma matéria podre da humanidade, não há nada que se envergonhar em relação a isso.
Lágrimas escoavam pelos olhos do homem.
            Você pode viver com isso, outros vivem despreocupadamente, por qual motivo não o conseguiria?  Na realidade, a única diferença entre nós é que você tem parte na decisão final, pode sumir com tudo isso ou ir em frente, essa é a única diferença entre você e eu.
Um silêncio decisivo pairou sobre o lugar. Lá fora um bêbado proferia xingamentos e batia na porta com força.
            É tarde demais- murmurou o homem- sempre foi tarde demais.
Com um gesto rápido puxou a descarga. Nada aconteceu, puxou de novo e de novo, o vômito, se é que isso era possível, o encarava com certa decepção. Olhou para cima, o teto estava a rodopiar, tudo estava a rodopiar, rápido, cada vez mais rápido, o chão tremia, um buraco se abriu e começou a sugá-lo, tentou resistir, mas era em vão, deixou-se ir e sumiu naquele vácuo.Sua escolha estava feita.

Um comentário:

  1. "Você pode viver com isso, outros vivem despreocupadamente, por qual motivo não o conseguiria? Na realidade, a única diferença entre nós é que você tem parte na decisão final, pode sumir com tudo isso ou ir em frente, essa é a única diferença entre você e eu."

    Acumula-se muita amargura e muitos vícios durante a vida...

    ResponderExcluir