sexta-feira, 25 de maio de 2012

Exílio (Conto)


Perdido em terras estranhas e hostis, encontrei-me de repente expurgado de qualquer lembrança de minha pátria mãe. Não só tinha esquecido as suas peculiaridades, como também tinha esquecido o seu nome, o nome do meu lar, o lugar em que passei a minha infância e o início de minha adolescência, estes, por sinal, também esquecidos.

A única coisa da qual me recordava eram as sombras, sombras do passado que insistiam em ficar na minha mente, reclamando a minha consciência, sendo mais reais que os homens da colônia, mais reais do que qualquer homem sobre a terra, sombras do velho mundo que só existiam para me lembrar que existia um velho mundo.

Quando fechava os olhos, às vezes via meu pai, ao menos parecia meu pai, tinha algo de mim dentro dele, uma sombra como todas as outras, sentado em frente a uma velha mesa, bebendo um vinho cor de sangue. Às vezes ele sorria para mim, um sorriso branco que ia de orelha a orelha, que contrastava com a sua forma negra, e em seguida ria efusivamente, um riso zombeteiro que ocupava todo o meu ser.

Em momentos de desespero ia à colônia procurar algum conforto. Tentava refugiar-me nas mamas rançosas das putas sifilíticas, mulheres exóticas, que não mais falavam, sequer sussurravam, que simplesmente abriam os braços e ofereciam seus amores a qualquer vagabundo com trocados. Estátuas de prazer e dor perdidas na eternidade desse lugar.

Após as minhas sessões com tais senhoras, geralmente ia tomar uma bebida. Os homens na taberna nunca notavam a minha presença, homens rudes, selvagens, nascidos do sol escaldante, da loucura ensandecida, demônios perdidos. Sempre os odiei, sempre odiei suas gargalhadas, seus cheiros nauseabundos, seus comportamentos humildes que só serviam para ocultar seus comportamentos violentos e corruptos.

No entanto nunca parava de observá-los, eu, sentado numa mesa distante, bebendo aguardente, e eles no outro extremo, em grupos, cantando, com suas vozes de bêbados desafinados, velhas canções, canções sobre mulheres vulgares e amores impossíveis. Cantavam aos berros como um coro maldito, isso até alguém começar uma briga, o que geralmente não demorava muito. Os motivos eram diversos: um olhar atravessado, uma palavra atrevida, uma dívida qualquer. Na realidade, não precisavam de motivos, começavam a brigar do nada: chutes, socos, facadas, o que tivessem à mão para atacar. E sempre tinham uma platéia aos júbilos, pedindo por mais, ansiando a morte de um dos envolvidos. Aquele abismo me atraía, não porque estivesse fascinado, mas sim porque me dava medo, e o medo me fazia sentir algo, apagava por alguns momentos as sombras que me atormentavam.

Por mais que tentasse, não conseguia achar a razão de minha aparente amnésia. Fazia tanto tempo que estava nesse lugar que tinha esquecido até mesmo de como tinha chegado até lá. Botei na cabeça que tinha sido expulso de minha terra, e não só tiraram a minha cidadania como também todas as minhas memórias daquele lugar, e por um descuido qualquer se esqueceram de apagar um vestígio, e esse vestígio eram as sombras. Quando pensava nisso, a cabeça doía, minhas pernas ficavam bambas e uma raiva incomensurável vinha até a mim.

Levei essa raiva comigo dia após dia, agüentando o meu inferninho pessoal, sempre a observar os absurdos do lugar, a violência calorosa, o abuso, o cheiro de bebida, cortadores de cana tendo suas costas castigadas pelo sol inclemente. Queria e precisava fugir.

Ruminei a possibilidade de suicídio, o último dos exílios, mas a minha religiosidade, que por sinal não havia desaparecido com a amnésia, não deixou que levasse o plano ao fim. A religião é algo gigantesca, te acompanha a todos os cantos da terra, te dá energia para continuar caminhando, dá a porção de mentira necessária e diária a todo ser humano que tem a pretensão de continuar vivendo. Claro, existem alternativas que te fornecem o mesmo, mas a religião é a mais poderosa, e tolo é aquele que diz que não precisamos dela. E a mentira que dei a mim mesmo é que havia outra solução.

 Por esses tempos as coisas começaram a ficar estranhas, os homens estavam inquietos, gritando mais do que o usual, agitados, esperando algo. A religião não servia de contento a eles, já a bebida era um combustível inebriante e letal que levava a colônia pouco a pouco à ruína. As autoridades locais agiram com o bom senso peculiar de gente de poder: começaram a espancar os baderneiros, coisa que de nada adiantava, pois esses homens nasceram apanhando e tudo o que sabiam fazer era bater de volta.

Não demorou muito para os poderosos e os pés rapados começarem a se matar. Numa tarde escutei o som de tiros e gritos. Dirigi-me à colônia com a esperança de ser morto e por fim ser libertado do meu exílio.

Corpos pelo chão, casas queimando, mulheres sendo violentadas, foi isso que vi por lá. Os homens morriam como moscas. Nada de mortes épicas e gloriosas, naquela época ainda acreditava nelas, graças aos poucos livros que li, nas mortes valorosas, mas a morte de um homem não tem sentido, não tem nada do que eles chamam de honra, só um pedaço de carne sanguinolento estatelando-se no chão e chorando como um bebê, chamando por sua mamãe, chamando por qualquer um.

Como se eu fosse um fantasma, ninguém tocou em mim, ninguém estava interessado em mim, estavam muito ocupados no momento. A fumaça estava deixando a garganta seca, precisava de uma bebida, uma boa bebida. A taberna não ficava muito longe.

Chegando lá, percebi que as portas estavam escancaradas, tudo deserto, haviam saqueado o lugar, mas ainda existia uma velha garrafa de vinho atrás do balcão, parecia até que estava esperando por mim, parecia que tinha escapado da mão de todos aqueles loucos para se entregar a mim. A dona estava atrás do balcão, morta, sangrando profusamente, passei por cima dela sem a menor cerimônia e peguei a garrafa prometida. Servi-me, vinho cor de sangue em um cálice cristalino, uma coisa bela de se ver. O sol já ia caindo, o que dava aos objetos da taberna um contorno misterioso, a velha mesa à minha frente era magnífica, pura sombra.

A morte rodeava tudo, e eu pensava em minha situação sob uma nova perspectiva. O mundo velho não devia ser lá muito diferente do mundo novo, tanto lá como aqui os homens morrem por nada e sem nada, se fosse diferente, se minha pátria fosse melhor, teria lembrado-me, não importando a artimanha dos meus supostos inimigos, o amor pelo meu lar teria feito as lembranças voltarem.

Talvez eu tenha causado a minha própria amnésia, pois quando não se conhece algo, às vezes esse algo é belo e misterioso, como as sombras, como a incerteza do meu passado. O meu passado poderia ter sido qualquer um, horrível talvez, mas isso não havia modo de confirmar, logo não podia ser afetado por ele. A incerteza do passado é o paraíso, enquanto a incerteza do futuro é o inferno.

E o presente é o exílio, exílio de tudo, exílio de meu país sem nome, e desta colônia perdida, e desta selva de múltiplas cores, e de todos os homens, e das putas mudas e sofridas, e do sol que corrói, e da vida e da morte, e até de mim mesmo. Agora consigo entender, nada sou além de uma sombra, sentado eternamente nesta mesa, a saborear este belo vinho cor de sangue, a escutar passos em minha direção, a rir de orelha a orelha de algo que não sei explicar. Um brinde, portanto, um brinde e vivas ao exílio.

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