quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Um dia qualquer (Conto)


O homem comum não estava se sentindo bem naquele dia. Não era para menos, sua vida andava de pernas para o ar: as contas não paravam de aumentar, o patrão não parava de atormentá-lo, sua filha entrava na puberdade e a cada dia ficava mais descontrolada, e, o pior, andava a suspeitar que sua esposa estivesse a colocar um belo par de cornos em sua cabeça.

Antes, porém, nada disso parecia chateá-lo. Geralmente, quando sentia uma dor incômoda, uma pontinha de consciência, ia afogar suas mágoas na bebida ou nos tele noticiários. Aliás, isso, os tele noticiários, ele adorava. Adorava todo aquele sangue esguichando pela Tevê, o registro de mais um belo dia em nosso belo mundo. Indignava-se sempre com os bandidos diários: “Escória” - dizia-o-, “deviam ser todos mortos”.

Mas hoje as coisas estavam diferentes. Logo cedo, ao se barbear diante do espelho, percebera que os últimos fios de seu cabelo haviam caído. Isso o espantou tremendamente, perder aqueles fios era como perder a juventude em si. Ao olhar mais de perto, tinha a impressão de que em sua careca brilhante e lustrosa estava escrito ‘Fim de jogo’. Os bons tempos haviam acabado. O problema é que eles, os bons tempos, nem eram tão bons assim, só mais do mesmo, a rotina enfadonha embelecida pelos ares do tempo. E ele não havia conquistado nada, nada de relevante nesses anos que tinha vivido. Não era um dos bens sucedidos e inteligentes, era só mais um entre milhares, só mais um com uma passagem direta para o túmulo, e, enfim, o esquecimento.

O peso da idade sempre piora as coisas. Sentimo-nos alienados na solidão, buscamos algo que possa nos confortar, mas é difícil, pois fica tudo embasado, confuso.

O homem comum, este, certamente estava confuso. Na mesa do café da manhã tentou reanimar-se: “Vamos lá, homem” pensava “sua vida não é tão ruim. Apesar de pobre, ao menos tem uma família, alguém em que se possa apoiar, e, nos dias atuais, isso é algo. Veja só a sua filha, veja como é graciosa, e sua esposa, uma verdadeira santa”. 

Mas tudo o que via era uma mulher que não o amava e nem o conhecia, que o traía pelas costas, que o rejeitava profundamente. E quanto à menina, nunca a vira tão distante, um muro de gerações os separava, também não a conhecia.

Tentou engolir essa impressão e lá se foi para o trabalho. O trânsito estava caótico. Um mal das grandes cidades, sempre se demora em chegar a algum lugar, uma lástima. Chegara atrasado no trabalho, com isso teve que escutar poucas e boas de seu patrão. Ele, o patrão, bem novo, um desses que acabara de sair da faculdade, com todas as suas teorias administrativas decoradas, sempre tentando motivar os empregados com sua parca filosofia.

O chefe não tolerava atrasos e falta de comprometimento, em sua concepção, o empregado deveria dar o corpo e alma à empresa, o deus maior.

 Dava nos nervos do homem comum, toda aquela falação, o fato de ter que ser comandado por um “moleque”, como ele sempre o chamava pelas costas. E, apesar disso, o salário não era bom assim, o suficiente para sobreviver com sua família, e, quem sabe, no final de ano visitar os seus parentes no interior, e só. Odiava tudo aquilo, mas tentava não refletir.

Começou o trabalho. Sempre a digitar os gordos números no computador, já havia decorado há um bom tempo, chegava a fazer com perfeição. Ao ficar digitando durante àquelas horas, às vezes parecia que ele não existia mais, só uma sombra, só uma extensão da máquina. Desses tempos, até que gostava. Aquele vazio permitia-o não sentir nada.

Hoje não conseguia, não conseguia sentir o vácuo dentro de si, não conseguia concentrar-se. Aqueles fios de cabelo, aqueles fiozinhos patéticos que haviam renunciado, o destruíam por dentro.

O resultado foi que não fizera nada, procrastinara o tempo todo ao tentar evitar pensar nesse incômodo. Sua cabeça girava, a batalha estava sendo perdida. No meio do expediente pediu para ir embora, sua justificativa foi de que estava doente. Clássica. Funcionou, apesar do olhar torto do chefe.    

Pegou o carro, não sabia para onde ir. Casa? Não havia nada lá, nada que pudesse confortá-lo. Dirigiu sem direção. Parado, no meio do trânsito infernal, começou a olhar para o nada, para as coisas além da paisagem. E fez o que nenhum homem em sua situação deveria fazer, começou a pensar.

Não o pensamento ordinário, aquele no qual nos perguntamos o que iremos jantar esta noite ou o que faremos quando o final de semana chegar. Não, não aquele. O que ocorria em sua cabeça era algo muito profundo, entrava numa caverna desconhecida e escura.

Percebeu a gravidade da situação. Percebeu que provavelmente tinha uns bocados de anos pela frente com a mesma vida miserável, sempre tentando melhorar ao seu jeito, de maneira honesta e decente, e nunca tendo êxito. Porque os prêmios maiores não são para gente como ele, a divina e sagrada Sociedade não permitiria. Ela, com seu poder, o subjugara, sequer dera uma chance. Pobrezinho.

Parou numa praça qualquer. Sentado, começou a admirar o mundo ao redor. Parecia mais cansado do que o normal, uma imensa raiva o preenchia, e essa raiva se transformava em algo mais, uma força, uma resistência.

Neste momento, queria mudar de vida. Prometeu a si mesmo largar o emprego de merda, largar a sua mulher, aliás, diria àquela adúltera que sabia que ela o estava traindo, e iria tentar fazer alguma conexão com sua menina, ser um bom pai, arriscar, fazer o mundo tremer. Seria um desses sujeitos bem-sucedidos, não importando de que forma, um extraordinário, sim, ele seria, dane-se a idade, dane-se os fiozinhos toscos, ele não precisava disso, não mais. O fato de estar vivo já era mais do que o suficiente, percebia isso e um sorriso aparecia em seus lábios, um verdadeiro sorriso, provindo da expectativa de mudança.

Meditou por horas, até que resolveu observar o pôr do sol. O velho sol, já se indo, já morrendo, consumindo-se, mas ainda sim tentando emitir alguma luz, aquela melancólica luz das tardes que torna tudo rosado. Não demora muito e ele é engolido, engolido pelas trevas.

A mudança iria ocorrer, estava decidido, ao menos naquele momento estava. Nem que fosse à força, Deus não mais o desprezaria. Abriria o caminho às patadas, de peito aberto, em suma, um violador.

O celular toca. Aquele toque irritante típico desses aparelhinhos, nunca tinha parado para pensar, mas odiava eles, os celulares. Sua primeira reação foi a de não atender, não tinha paciência para aquilo. Mas os hábitos são sempre fortes, verdadeiras armadilhas, não conseguiu se segurar. Atendeu.

A esposa pede para pegar a filha na casa de uma amiga. O lugar parece longe. A noite cai depressa. Considerou esta sua última tarefa como homem comum. Amanhã, amanhã tudo estaria mudado.

E bota longe nisso! O engarrafamento o atrasou por horas, até que chegou ao seu destino final. Lugar feio, bem feio. Um desses bairros esquecidos das cidades, onde tudo acontece dia e noite e ninguém percebe.

Com tanta coisa passando por sua cabeça, esquecera o número do apartamento da amiga da filha, tentou ligar para mulher, para perguntar, mas ela não atendia. Resolveu andar pelos blocos, para ver se recordava. Tudo deserto, silencioso, miserável. Em sua caminhada, achou a porta de um apartamento aberta. Não tinha o costume de entrar sem ser convidado, mas uma força o atraiu para dentro.

Logo ao entrar, no chão encontrou uma mulher, embebida de sangue, retalhada, nua e morta. Estado de choque. Não sabe o que fazer. Decide por dar o fora dali. Sai correndo.
De repente, portas se abrem às suas costas, como mágica. Gente correndo e gritando. “Ele foi por ali”, escuta.

Ele chega até a rua. Pessoas o estão perseguindo. Sabe disso. Talvez devesse ir ao encontro delas, explicar a situação. Mas será, será que as pessoas iriam escutá-lo? Elas, geralmente, só entendem de uma linguagem, a da violência, esta, que é a verdadeira linguagem universal.

 Correu mais. Estava sendo alcançado. Era só chegar ao carro e fugir. Não estava longe.

“Assassino! Estuprador! Pega ele, pega ele!”

Em sua pressa, decidira por olhar para trás. Grande erro. Bem perto de suas fuças havia uma multidão espumante, clamando por sangue. Não ia desistir, não podia desistir. “Vai dar tudo certo, tudo certo”, pensava desesperadamente.

 Fôlego indo embora. Já não conseguia correr mais. O seu coração batia mais do que nunca. 
Um infarto, talvez? Pouco importa. Caiu ao chão, estafado, sem forças para prosseguir, derrotado. A turba cercou-se dele.

Tentou explicar, mas tudo o que saía de sua boca eram palavras vazias, grunhidos e depois o choro. Chorava como uma criancinha. Sentia-se culpado, não sabia o porquê, mas sentia-se culpado, isto o atordoava.

A multidão queria suas carnes. Um exército de homens e mulheres comuns ávidos por sacrifícios, um ritual, um ritual sagrado. Mesmo se tivessem a prova definitiva de que aquele pobre coitado fosse inocente, ainda teriam ido em frente com prazer. Assim como Jesus, aquele homem iria ser sacrificado por algo, sendo inocente ou não, era o necessário. Só que ao contrário de Cristo, ele não será glorificado por dois mil anos, não, com muita sorte talvez seja lembrado por um dia ou dois, irá levantar alguma indignação nacional e, quem sabe, um breve comentário apaixonado do apresentador obeso do jornaleco sensacionalista da tarde.

Ele não conseguia mais pensar, nosso homem já não tão comum. A dor era demais. Dá-lhe chutes daqui, chutes de lá, ofensas e pauladas.  E lá se ia seus sonhos, suas mudanças, com essas pauladas. Uma loucura. Rasgavam suas roupas.

Não demorou. O povo, que é a voz de Deus e dos homens, fez seu trabalho corretamente. Lá está ele agora, o homem, antes de ser recolhido, seu rosto expressa imensa decepção. Suas partes mutiladas, só para confirmar a castração de toda uma vida. No final das contas, estava amarrado a um pau, nu em pêlo, com a língua de fora, e em cima de sua cabeça uma placa rústica feita de papelão, e escrito numa letra mal-feita a palavra “Estrupador”.

O sofrimento ao menos havia acabado. É isso que importa: que o sofrimento acabe. Às vezes é bom se convencer disso, e, que, por mais que se tente, todas as opções são erradas.


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